David Cruz
Tutor

Entrevista

David Cruz, UX & Front-end Developer na minuscode e tutor do curso User Experience & User Interface da EDIT., refere que "Uma atitude fundamental para realizar o trabalho de UX é anular-se." e destaca que "Há «fome» de bons profissionais desta área."

"Pessoalmente, o meu maior desafio tem sido balançar o meu desejo de perfeccionismo com o pragmatismo necessário a um projecto que tem de ser lançado."


Fala-nos um pouco do teu percurso profissional e da tua rotina de trabalho

Reflectindo sobre o meu percurso, poderia não parecer claro que viesse a tornar-me um profissional de User Experience (UX). Passei por diversas áreas, aparentemente não relacionadas, que me deram uma visão holística e flexível, fundamental para um bom trabalho nesta área.

Formei-me em engenharia informática na FCUL e, ainda lá, envolvi-me com os grupos de investigação HCIM (focado em Human-Computer Interaction) e XLDB (focado em Information Retrieval e processamento de dados em larga escala), com quem acabei por fazer a minha tese de mestrado em sistemas de pesquisa geográfica. Seguiu-se uma passagem pela Linguateca, um grupo de investigação focado na criação de recursos para o processamento informático da língua portuguesa.

Nesta altura, atingi uma bifurcação. Estava indeciso para que área ia seguir o meu rumo e decidi fazer uma espécie de «sabática». Mas foi de pouca dura… uma semana.

Fui desafiado pelo Arquivo da Web Portuguesa, a fazer a integração de recurso histórico no Arquivo: a integração de um CD de 1996 com todas as páginas web portuguesas da altura.

Após esta tarefa, fui convidado pelo Arquivo para fazer parte da equipa, assumindo funções de Webdesigner, Frontend developer e… usabilidade.

E foi assim, há quase 8 anos, que começou a minha aventura na área de usabilidade, indo até Londres fazer uma formação com o o Nielson Norman Group e iniciando, no Arquivo.pt e na FCCN, trabalhos e processos de usabilidade (numa altura em que ainda não era «cool»).

Seguiu-se uma passagem pelo SAPO, na qual integrei a equipa de Qualidade e Usabilidade. Uma equipa fantástica que me ajudou a melhorar lacunas que tinha, relevantes para esta área: wireframing, prototipagem, conteúdos, …

E, porque a história já vai longa, desde o começo deste ano, assumi um novo desafio: saltei para a vida de empreendedor, na minuscode, que ajudei a fundar, para ser o especialista de UX residente.

Os dias alternam-se entre tarefas de UX (wireframes, protótipos, análises periciais, testes de usabilidade), e webdesign, programação, Quality Assurance, entre outros. Até ao momento, o foco dos trabalhos tem sido para projectos internacionais na área da saúde, e para uma das principais cadeias de supermercados e alguns bancos nacionais.

Sempre que posso fugir às minhas obrigações, páro para ler, refrescar conhecimento e preparar formações internas da equipa.


Quais são as principais dificuldades/desafios que encontras no teu trabalho?

Pessoalmente, o meu maior desafio tem sido balançar o meu desejo de perfeccionismo com o pragmatismo necessário a um projecto que tem de ser lançado.

No que toca aos projectos, nos quais tenho estado envolvido, verifico que se não houver um processo bem definido, é sinal que irão ocorrer derrapagens nos prazos e orçamentos.

Quando a prioridade não está, nem na qualidade, nem nos utilizadores que se está a servir, os projectos acabam por não apresentar um design de renome. Seguem direcções tecnológicas, aplicam design by commitee ou curvam-se perante as opiniões de quem tem mais poder. No fundo, o contrário do que se espera de um processo User Centered Design. Prevalece o comportamento de pôr logo «as mãos na massa», sem plano ou objectivo, originando produtos totalmente desfazados da realidade e das necessidades dos utilizadores.

Devido a essa troca de prioridades, a fase de user research ainda é algo que continua a ser difícil de convencer os clientes a investir e incluir no planeamento, mesmo que digam que «querem um produto com UX».

Uma atitude fundamental para realizar o trabalho de UX é anular-se, para que o foco recaia no utilizador. Isto leva a ocasionais atritos, em que designers se comportam como progenitores, protegendo as suas «crias» quando alguém critica o seu trabalho, esquecendo-se de que, enquanto a arte gira à volta do criador, design gira em redor da audiência que pretende servir.

E por fim, há o argumento depressivamente divertido: «isso é senso-comum».

Resiste-se em aceitar as Ciências Sociais (Antropologia, Semiótica, Psicologia, …) e soft skills, para a boa execução de projectos. Há a percepção de que o matemático e determinístico são a via ideal, esquecendo que, por definição, o ser humano é inconsistente e complexo.


Quais foram as maiores inspirações que te levaram a escolher esta profissão?

Se há algo que o meu percurso até aqui me obriga a fazer, é humildemente reconhecer que a minha carreira de UX foi menos uma decisão convicta minha, e mais um conjunto de circunstâncias e bonança que me levaram a pôr o pé no mundo da usabilidade.

Inspirações, inspirações… foram inúmeras e todas contribuíram: da curiosidade e valores que foram alimentados pela família, aos desafios feitos pelos professores, às lições de vida de amigos e desconhecidos.

Porém, tenho de agradecer a uma pessoa em particular: ao Daniel Gomes, do Arquivo da Web Portuguesa. Viu em mim o potencial que não sabia existir, e deu-me o empurrão, no momento certo, nas profundas águas da usabilidade.


Achas que a experiência do utilizador é um fator determinante nos projetos feitos em Portugal?

Lamentavelmente não.

Continuamos um país hierárquico e egoísta, mais preocupado em agradar as chefias e alimentar o nosso ego. O qué é incompatível com exercer análise e design de UX.

É suposto destituirmos o nosso «Eu», para encontrar a resposta junto de quem usa o produto, não aceitar a «resposta divina» do chefe ou administrador, e perceber o «o quê», «como», «quando», «onde» e «porquê» das coisas.

Diria que nos falta insolência e um sentimento de causa, para elevar as nossas criações além dos jogos de poder das equipas e construir «a solução» de que o utilizador necessita.

Por diversas vezes, tive de fazer o esforço extra, à revelia, para poder investigar e criar uma solução que respondesse às necessidades e frustrações dos utilizadores. Em tempos, ensinaram-me que «Mais vale pedir “desculpa” do que “pedir se faz favor”».

Contudo, fugindo do mundo abstracto das atitudes e emoções, todos estes factores fazem com que, apesar de todos os decisores afirmarem que uma boa experiência/usabilidade/interacção é fundamental, na prática, raramente é dado tempo ou orçamento para realizar estes trabalhos convenientemente.

«Queremos» imitar o que se faz lá fora, mas falta a formação necessária para perceber o que é UX e como se concretiza.

Leccionar o curso de UX na EDIT é a minha tentativa de sensibilizar e evangelizar para o que é realmente User Experience.


Como está o mercado atualmente no que toca a profissionais nesta área?

Felizmente, o mercado preocupa-se mais em fazer as coisas como deve ser e isso, permitiu à área de usabilidade, interacção e, mais genericamente, User Experience, darem o seu contributo precioso aos projectos. Há «fome» de bons profissionais desta área.

Infelizmente, ainda existe alguma reticência em envolver os utilizadores nos processos de desenvolvimento e criação de produtos. O que é contrário ao conceito base de UX.

Ainda existem receios de que tarefas de user research – nas quais se vai para o terreno perceber os utilizadores, as suas necessidades, comportamentos, frustrações, … – provoquem atrasos e aumento de custos. Mas, geralmente, o que acontece é os projectos não responderem às necessidades dos utilizadores e falharem catastroficamente. O que provoca ainda mais atrasos e custos.

Em Portugal, este fenómeno é mais notório. Na tentativa de se controlar despesas em áreas de soft skills, acaba-se por avançar sem rumo, ou com o rumo errado.

Para agravar, existem muitos supostos «especialistas/designers de UX» que transmitem as ideias erradas, só se preocupando com a parte estética. Se alguém disser que faz UX sem consultar utilizadores, é sinal para se levantar e abanar energeticamente uma bandeira vermelha. Não é bom agouro.

Uma boa formação é essencial para separar o trigo do joio e desenhar as experiências correctas aos utilizadores. Têm surgido bons cursos nesta área, o que me transmite confiança na formação de profissionais competentes.


Podes destacar um ou dois exemplos de uma boa implementação de User Experience e outros dois de utilização de um mau User Experience?

Numa altura em que UX é, erradamente, sinónimo de sites esteticamente apelativos, com demasiadas animações e que gritam «olha o quão criativos nós somos», um dos meus sites de referência é o site governamental inglês.

Apesar da sua lógica e estética aparentemente aborrecidas, este site faz quase tudo bem.

Considerando uma audiência extremamente diversificada (todos os cidadãos ingleses), o site esforça-se por fornecer o correcto acesso à informação nele contida.

É possível observar o incrível esforço na criação de uma arquitectura de informação intuitiva, uma implementação que garante que o site é acessível a todos os utilizadores (independentemente de limitações visuais, motoras e cognitivias), copywrite claro e directo. A estética é utilitária e o reflexo da sua missão: dar, de uma forma clara, a informação que os utilizadores procuram.

Outro exemplo que gostaria de destacar, é a Apple. Apesar de não ter a qualidade e precisão na construção de experiências e interfaces de outrora, continuam a ser uma referência quando se trata da forma como gerem as experiências dos clientes: não como uma amalgama, mas antes de forma holística. A qualidade que é tipicamente atribuída à empresa, é consequência, não só da precisão dos seus produtos, como também do esforço e detalhe que é investido nas embalagens, nas lojas (online e offline) e serviço de apoio ao cliente. Existe uma clara preocupação em aperfeiçoar todos os canais de comunicação e touchpoints dos seus clientes, para aumentar a sua satisfação e fidelização.

Muitos outros podiam ter sido mencionados, quer pelo trabalho digital, quer pelo offline: BBC, Dropbox, Mailchimp, parques da Disney, Emirates Airlines, … 


Tens alguma meta a cumprir nos próximos tempos?

Para já, vou guardar as minhas maiores metas em segredo. =)

Mas uma das que tenho, agora que estou na minuscode, centra-se na criação de conteúdos, recursos e palestras na área.

Gostaria de dinamizar a comunidade nacional à volta de temas basilares de usabilidade, interacção e accessibilidade, pondo um fim à confusão que tem existido, na qual se mistura User Interface (UI) e Creative direction com UX.

Temos um punhado de bons profissionais, detentores de valiosíssimo conhecimento que merece ser partilhado, mas que tendencialmente se mantém discretos.


Dá-nos a tua opinião sobre o que achas que vai ser tendência neste setor.

Esta área irá atingir, inevitavelmente, a sua maturidade. Iremos ultrapassar esta fase de hype, na qual a intepretação do que é User Experience está a ser confundida com grafismo, animações para wow-factor ou marketing para vender melhor (algo que chamo, carinhosamente, de «pôr pós de UX» para melhorar).

A análise e design de UX será uma posição mandatória nas equipas pluridisciplinares das empresas, a par com o desenvolvimento, marketing, design gráfico, …

As empresas, já não podem somente lançar mais funcionalidades ou seguir tendências, têm de se diferenciar dos seus competidores pelas experiências que proporcionam. Se as empresas de topo já perceberam este facto, é inevitável que esta necessidade se faça sentir nas outras, quer por osmose, evolução ou imitação.

Quanto a novas áreas de negócio e tecnologias, muito está por explorar relativamente à «Realidade Virtual» (VR). Há todo um novo ímpeto na indústria automóvel, para conectividade e integração de sistemas inteligentes, projectos desafiantes de cidades inteligentes/conectadas.

Tudo isso, enquanto se mantém o trabalho nas actuais áreas de processos, web, mobile, …, nas quais os profissionais de UX se movimentam.

Com tanta área de actuação, inevitavelmente surgirão as necessidades dos profissionais que se especializarem em algumas delas.


Indica dois livros de referência para quem quer aprender mais um pouco sobre este tema

Apesar de ser algo introdutório, Don’t Make Me Think por Steve Krug. É excelente para acender o interesse e convencer decisores (se conseguirmos que o leiam).

Uma referência obrigatória é The Design of Everyday Things. A edição original é de 1988 e, como tal, precede a Internet. Aborda ergonomia, psicologia comportamental e design.

E, porque não há dois sem três: About Face por Alan Cooper. É «o» livro de Design de interacção.


O que gostas de fazer nos teus tempos livres?

Sempre que consigo, gosto de viajar, ir à descoberta de novas culturas, formas de pensar, inspiração e… comida.

Mas como nem sempre é possível, por norma, resume-se a fazer experiências na cozinha, ler, fotografia e aborrecer os meus amigos com conversas nerd.

Algo mais recente, é a prática de meditação Chan. Uma forma de tentar «desligar» o cérebro à força e encontrar equilíbrio num ambiente que nos induz ao limite das nossas capacidades cognitivas.



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